Ano 1, Número 1 - Novembro de 2008
Leia nesta edição:___________________________________________
Oficialização do Departamento
Inobdígena
Manifesto da AMTB
Oficialização do departamento indígena
Foi eleita em nossa última assembléia, realizada durante o
5o
CBM, a nova diretoria do departamento de assuntos indígenas,
tendo à frente os irmãos Rocindes Corrêa (Asas de Socorro) - Diretor , Edwar Gomes da Luz
(MNTB)- Diretor Adjunto , Ronaldo Lidório (AMEM/APMT)-
Coordenador de Pesquisas , e Cassiano Luz (SEPAL)-
Coordenador de Comunicação . A opção por mais autonomia ao departamento,
foi tomada em decorrência da granda demanda que exige respostas
rápidas e ações efetivas por parte das missões que atuam em
áreas indígenas. Manifestamos nossa profunda gratidão ao irmão
Enoque Faria pelo excelente trabalho realizado ao longo de anos
à frente deste ministério, e colocamo-nos à disposição dos
irmãos. Para qualquer questão relativa a esse tema, utilize o e-mail
indigena@amtb.org.br.
Pretendemos que este boletim digital seja um importante
instrumento para encurtar as distâncias e melhorar nossa
comunicação.
Pr. Silas Tostes
Presidente da AMTB www.amtb.org.br
Manifesto da AMTB
O documento a seguir é a
resposta oficial da AMTB às três principais acusações que têm sido
feitas às missões que atuam em área indígena. Nossa intensão é que
seja amplamente divulgado, portanto sinta-se à vontade para
publicá-lo em seu site ou quaisquer outros meios.
Presença e ação missionária evangélica entre os povos indígenas do
Brasil
Manifesto da AMTB –
Departamento Indígena *
Há, normalmente, três
recorrentes questionamentos quanto à presença missionária
evangélica entre os povos indígenas do Brasil e desejamos, como
AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileiras - , tratar
e nos posicionar objetivamente quanto aos mesmos. A primeira infere
que a presença missionária é nociva à cultura dos povos indígenas
em nosso país. Que a mensagem levada pelos missionários tende a
degenerar cultura e costumes dos grupos com os quais se relacionam.
O segundo questionamento é quanto à legalidade da presença e ação
missionária evangélica à frente de projetos sociais e na
evangelização. O terceiro pressupõe que os projetos sociais,
coordenados pelos movimentos missionários, sirvam de fachada para
fundamentar sua presença entre os mesmos.
Perante tais questionamentos, sentimos que se torna apropriado
narrar com objetividade quem somos, nossos valores e ações entre os
povos indígenas do Brasil.
O Evangelho e a Cultura Indígena
A simples presença missionária
entre povos indígenas suscita em alguns um sentimento de rejeição,
que advém de um emaranhado de impressões e fatos históricos em
relação à atuação missionária indígena desde a colonização,
relembrando uma Igreja que estava a serviço dos interesses
políticos, imperialistas e colonizadores. Em outros, o sentimento é
de suspeição, debaixo do pressuposto de que qualquer atuação
missionária é nociva à preservação cultural indígena. Perante este
contexto, e, sobretudo para aqueles que se embutem de rejeição ou
suspeição, desejamos expor fatos sociais, culturais e históricos
que poderão mostrar com clareza que a presença missionária
evangélica entre povos indígenas está hoje associada a um crescente
processo de colaboração com a preservação lingüística e cultural
dos povos do Brasil, além de mostrar-se ativamente interessada em
participar do despertar indígena que busca seu lugar neste grande
país.
A presente realidade
cultural indígena em relação aos processos de mudança social
Tornou-se rotineira a
veiculação de notícias sobre indígenas brasileiros ingressando em
cursos superiores, formando-se advogados, enfermeiros,
ambientalistas, dentre muitas outras profissões, galgando novos
patamares de protagonismo, empreendedorismo e agenciamento na
sociedade nacional. Alguns grupos e indivíduos participam
ativamente da economia local e até internacional. Cada vez em maior
número e força, as sociedades indígenas e seus indivíduos
influenciam ativamente a política local, desejando ansiosamente
participar da construção de leis e atividades que são de seu
interesse e os afetam diretamente. Em algumas regiões do Brasil, a
participação indígena pode mudar os rumos das eleições municipais.
Muitos indígenas podem e usufruem dos benefícios sociais garantidos
constitucionalmente, oferecidos pelas três instâncias da
administração executiva do país. Do Governo Federal, vêm auxílios e
bolsas, tais como Auxílio Maternidade, Bolsa Família,
aposentadorias e salários, além das atividades praticadas pelos
dois órgãos de auxílio indígena federais: a FUNAI (Fundação
Nacional do Índio) e FUNASA (Fundação Nacional da Saúde). Dos
governos Estaduais e Municipais, vêm projetos desenvolvimentistas,
apoio para projetos locais, além da educação e saúde,
operacionalizados na esfera municipal. O universo indígena
brasileiro está em franca transformação social por diversos motivos
e poucas etnias continuam alheias a este processo. Tais motivos são
muito menos religiosos (evangelização) e muito mais sociais e
políticos, ou seja, o poder de influência e atração da sociedade
brasileira não indígena bem como as políticas públicas do governo
do nosso país provendo educação, saúde e bem estar, gerando nas
etnias indígenas expectativas cada vez mais associadas ao universo
não indígena. Qualquer contato, seja motivado pelo interesse
econômico, político, governamental ou religioso, pode ser
potencialmente revolucionário para as sociedades indígenas.
É fácil constatar tal
realidade de transformação sociocultural e dissociá-la das ações
missionárias, em grande parte. Para isso, basta observar as vastas
áreas indígenas sem presença missionária onde tais processos de
transformação transcorrem com grande velocidade, sempre atrelados à
atração que pequenos vilarejos ou cidades exercem sobre os povos
indígenas, ou às políticas públicas que se propõem a levar bem
estar e, conseqüentemente, conduzem também padrões socioculturais
alienígenas ao universo indígena. Não são poucas as etnias migrando
do interior da mata para a beira dos grandes rios, a fim de terem
acesso ao escambo promovido por barcos-comércios bem como à
educação e saúde em pólos mais próximos aos centros urbanos ou em
urbanização. É certo concluir que, à medida que o indígena se
aproxima de um contexto distinto e urbanizado, ele se insere em um
ambiente onde é facilmente descriminado por não se adequar às
exigências sociais locais, gerando, assim, um misto de frustração
em relação ao meio e anseio por encontrar uma medida de
concordância entre ser índio ao mesmo tempo em que possa ser
respeitado e usufruir do novo que julga bom. Esse estado de
transição, no qual a maior parte das etnias brasileiras se
encontra, é, certamente, um dos problemas mais graves e complexos
observados, e não há fácil resposta. Há iniciativas
integracionistas, outras preservacionistas e ainda as que segregam
socialmente os indígenas. Porém todas concordam que a presente
realidade de transição é complexa e com graves conseqüências
culturais para os povos do Brasil. Junto a isso, soma-se o fato de
que se lida, no Brasil e em toda a América do Sul, com uma vasta
diversidade lingüística e cultural entre os grupos indígenas. O
próprio termo indígena é resultado de nosso simplismo ao
imaginarmos um grupo homogêneo, com anseios e necessidades também
semelhantes. É preciso relembrar que as mais de 250 etnias
indígenas brasileiras formam, assim, um universo pulverizado e
heterogêneo, lingüística, cultural e socialmente.
Se por um lado esses processos
nos preocupam, por outro devem nos levar a refletir sobre as
escolhas iniciadas pela maioria dos grupos indígenas, o que buscam
e quais seus anseios. Todos os principais teóricos da antropologia
afirmaram, em maior ou menos escala, o pressuposto das mudanças
culturais. Para muitos destes, a mudança cultural é um fenômeno
natural e previsível, um processo inerente à dinâmica essencial das
culturas humanas, podendo ocorrer como reações e reajustes
endógenos e/ou por motivações exógenas, geralmente advindas do
contato intercultural, marcadas ou não por pressões e imposições
externas. As trocas interculturais são, portanto, um processo comum
e importante na medida em que alargam os horizontes da compreensão
humana, as possibilidades de atuação econômica e produtiva, e
possibilitam que os membros de uma sociedade repensem sua
organização social, seus tabus, interditos e preconceitos, e
revejam seu modus vivendi. A história humana é repleta de exemplos
de grupos humanos que cresceram, progrediram e multiplicaram-se
após ajustes sociais advindos de mudanças culturais, quer motivadas
pela reflexão interna e endógena, quer pelo contato com indivíduos
de outras sociedades. A dinâmica cultural é um dado fundamental
para toda e qualquer sociedade, e sinal de que a cultura está viva
e gozando de plena saúde. Isso nos faz pensar sobre a postura do
mundo não indígena em relação ao indígena concernente ao respeito
às suas escolhas, decisões e questionamentos.
Percebemos assim, que:
O universo indígena é
heterogêneo, sendo formado por uma grande diversidade cultural e
lingüística. A realidade de um grupo indígena não é a realidade de
todos, bem como sua jornada. O universo indígena é formado tanto
pelos índios citadinos semi integrados ao ambiente não indígena,
quanto pelos índios da floresta que desejam manter distância, e por
um leque enorme de categorias entre estes dois pontos.
As principais forças de
transformação cultural entre os grupos indígenas do Brasil são a
sociedade não indígena e as políticas públicas governamentais.
Enquanto a primeira produz um poder de atração de forma não
planejada e informal a segunda o faz por meio dos serviços que
julga relevantes e necessários aos povos indígenas.
A cultura humana é dinâmica,
provocando e sofrendo processos de mudanças. Seja por motivações
internas ou a partir de trocas interculturais, cabe ao próprio
grupo refletir sobre sua organização social, tabus e crenças. Cabe
também ao próprio grupo promover, ou não, ajustes sociais que
julguem de benefício humano.
A cultura e o evangelho
Nenhum elemento externo jamais
deve ser imposto a uma cultura. Toda imposição pressupõe carência
de respeito humano e cultural, além de grave erro na construção do
diálogo. Assim, a catequese histórica e impositiva, bem como
qualquer outro elemento que force a mudanças não desejadas, mesmo
em áreas como educação, saúde e subsistência, devem ser duramente
criticadas.
Por outro lado, é também
respeito cultural conceber ao indígena o direito de realizar
escolhas, voluntárias e desejadas, dentro de seu próprio bojo
cultural. Para Roberto Cardoso, a mudança é possível se percebida
sua necessidade e deve ser processada no interior de uma comunidade
intercultural de argumentação[1]. Ele se baseia no
etno-desenvolvimento que, na declaração de San José (1981) é “o
fortalecimento da capacidade autônoma de decisão de uma sociedade
culturalmente diferenciada para orientar seu próprio
desenvolvimento e o exercício da autodeterminação”.
Rouanet expõe que “o homem
não pode viver fora da cultura, mas ela não é seu destino, e sim um
meio para sua liberdade. Levar a sério a cultura não significa
sacralizá-la e sim permitir que a exigência de problematização
inerente à comunicação que se dá na cultura se desenvolva até o
telos do descentramento”[2]. Este argumento nos leva a
compreender que os conflitos são universais, tais como a morte, o
sofrimento, a discriminação ou a repressão. E perante estes
conflitos, podemos compartilhar a mútua experimentação na busca de
soluções internas.
As chamadas mudanças
culturais, em lugar de causarem rápida rejeição, devem ser observadas
de forma mais íntegra, ou seja, se tais mudanças são voluntárias e
desejadas. O machismo, na América Latina, embora seja cultural, é
atacado e limitado por políticas públicas que vêem neste elemento
cultural um dano ao próprio homem e sociedade. O jeitinho
brasileiro, que patrocina a corrupção e tolerância de pequenos
delitos, apesar de ser resultante de elementos também culturais não
deixa de ser compreendido como nocivo ao homem. Como tal não é
aceito pela sociedade como desculpa para a continuidade de práticas
danosas à vida. O mesmo poderíamos falar a respeito do racismo.
Nestes três casos, a universalidade ética é evocada e aceita de
forma geral pela sociedade e os direitos humanos são reconhecidos.
Por que não no caso de elementos culturais nocivos à vida, como o
infanticídio e conflitos étnicos, em contexto indígena?
O fato é que a aproximação e
conhecimento do evangelho e valores bíblico-cristãos contribuem
para uma reflexão interna em algumas sociedades indígenas, gerando
mudanças voluntárias e desejadas. Se as culturas são móveis e
mutáveis, por que as mudanças provocadas a partir do conhecimento
dos valores cristãos e do evangelho despertam tantas e tão
violentas reações quando se trata de culturas indígenas?
Quando as motivações
missionárias são questionadas, em sua relação com as sociedades
indígenas, há de se notar clara discriminação. Há iniciativas
particulares e governamentais junto às sociedades indígenas,
conduzidas pelas mais diversas motivações como a política,
financeira e humanista. A iniciativa missionária evangélica possui,
como principal motivação, valores cristãos como o amor ao próximo,
a solidariedade humana e o evangelho e, devido a isso, sente-se
freqüentemente discriminada, como se a motivação religiosa fosse
menos digna que a política. Precisamos rever nossos pressupostos.
Há grave diferença entre a
catequese e a evangelização. Todo cristão, sincero e convicto de
sua fé, tem ou deveria ter o desejo de compartilhar aquilo que tem
de mais precioso em seu ser e sua cultura, qual seja, a sua fé e as
verdades do evangelho, uma baseada e construtora da outra. Tal
compartilhar, quando em um ambiente em que o mesmo é desejado pelo
receptor, não oprime a cultura, ao contrário promove diálogo e
reflexão.
Esta evangelização difere-se
da catequese em relação ao conteúdo, abordagem e comunicação.
O conteúdo da catequese é a Igreja, com seus símbolos, estrutura e
práticas, sua eclesiologia. O conteúdo da evangelização é o
evangelho, os valores cristãos centrados em Jesus Cristo. A
abordagem da catequese é impositiva e coercitiva. A abordagem da
evangelização é dialógica e expositiva. A catequese se comunica a
partir dos códigos do transmissor, sua língua e seus costumes,
importando e enraizando valores. A evangelização se dá com a
utilização dos códigos do receptor, sua língua, cultura e ambiente,
respeitando os valores locais e contextualizando a mensagem.
A influência intencional do
movimento missionário evangélico orientado pela AMTB (Associação de
Missões Transculturais Brasileiras) possui alvos de forte
colaboração com a preservação cultural, social e lingüística das
sociedades indígenas de nosso
País, tais como:
- Contribuir para que o
indígena valorize e permaneça em sua própria terra natal
(sua homeland), evitando migrações tempestivas e com
conseqüência social negativa para a beira dos grandes rios, centros
em urbanização ou urbanizados.
- Colaborar para que haja um
bom programa de educação na própria língua materna, valorizando-a e
possibilitando que seus fatos históricos e sociais sejam por eles
registrados, preservados e transmitidos perante este contexto de
rápida influência social externa que, não raramente, invalida o
valor da língua materna para um grupo.
- Colaborar para que haja
programas em áreas vitais, como a saúde, que responda às
necessidades essenciais dos grupos indígenas.
- Contribuir para que, em
processos já em andamento de integração com a sociedade não
indígena, colaborar com os mecanismos de valorização étnica,
cultural e lingüística, a fim de que o grupo não seja diluído
perante a sociedade maior. Também colaborar com o grupo em sua
busca por uma convivência digna com outros, quando fora da sua
terra natal.
Em uma observação imparcial,
destituída de pressupostos discriminatórios quanto à evangelização,
perceberíamos que diversas sociedades indígenas que mantêm um
relacionamento mais próximo com missionários evangélicos valorizam
mais sua própria cultura e língua do que no passado.
Não podemos negar que a
postura antropológica brasileira, não intervencionista, é
influenciada também pela culpa coletiva pelo passado, pela forma
desastrosa como os indígenas foram julgados e condenados. Postura
semelhante se viu na Alemanha pós-nazista que, de uma xenofobia
causticante, se extremou por algum tempo nos caminhos de uma
tolerância radical ao diferente, qualquer diferente, mesmo o nocivo
socialmente.
Aryon Rodrigues estima que, na
época da conquista, eram faladas 1.273 línguas,[3] ou seja,
perdemos 85% de nossa diversidade lingüística em 500 anos. Luciana
Storto chama a atenção para o Estado de Rondônia, onde 65% das
línguas estão seriamente em perigo por não serem mais aprendidas
pelas crianças e por terem um ínfimo número de falantes. Precisamos
perceber que a perda lingüística está associada a perdas culturais
complexas, como a transmissão do conhecimento, formas artísticas,
tradições orais, perspectivas ontológicas e cosmológicas.
Perante tal realidade, somos
levados a observar o passado e defender uma postura radicalmente
não intervencionista, não dialógica, no presente. No subconsciente,
talvez estejamos tentando minimizar o risco de outros erros. Porém
não percebemos que essa omissão apenas há de contribuir para a
ausência de soluções de subsistência, seja numérica, lingüística ou
cultural, dos povos indígenas do Brasil. Não devemos evitar o
diálogo, mas sim a subversão. Não devemos nos omitir da busca
coletiva pela solução de conflitos, mas sim evitar a imposição em
reações que não sejam autônomas. Ao participar da construção do
ambiente que gera o dano, devemos também participar da busca pelas
soluções.
Percebemos, assim, que:
Toda imposição é nociva e
desrespeitosa. Nenhum elemento deve ser imposto a uma sociedade,
seja indígena ou não indígena, sob nenhum pressuposto.
A cultura humana não é o
destino do homem e sim seu meio de liberdade. É também respeito
cultural conceber ao indígena o direito de realizar escolhas,
voluntárias e desejadas, dentro de seu próprio bojo pessoal e
social.
As motivações missionárias
evangélicas para o relacionamento com as sociedades indígenas devem
ser igualmente respeitadas. Motivação religiosa não deve ser
confundida com imposição religiosa.
A evangelização difere-se da
catequese em relação ao conteúdo, abordagem e comunicação. Cabe ao
indígena mensurar o valor da evangelização, em seu ambiente e com
total liberdade.
Legalidade e presença missionária entre os povos indígenas no
Brasil
Percebe-se que, no Brasil, a
história das relações entre missões evangélicas e o órgão oficial
indigenista – FUNAI – tem sido esquecida, fenômeno que muito
facilmente produz acusações falsas como a de que as missões
evangélicas, que atuam em território nacional, exercem ilegalmente
suas atividades em terras indígenas. Portanto, para compreender a
situação presente das relações entre essas entidades e a FUNAI,
faz-se necessário relembrar os respectivos eventos que se
desenrolaram na década de 90, dos quais a realidade atual é
legítima herdeira.
A tensão entre alguns setores
da sociedade e o contingente missionário não é novidade. Muitas das
entidades de apoio aos indígenas foram construídas sobre esse
alicerce. Devido à inconsistência de uma política indigenista
nacional, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) fica muito mais à
mercê da ideologia de seu presidente em exercício, que costuma
permanecer um curto período de tempo nessa posição. Assim, algumas
vezes, as missões evangélicas foram recebidas como parceiras;
outras vezes, rechaçadas como se fossem inimigas. Uma das últimas
tensões ocorreu na década de 1990, mais precisamente no ano de 92.
Naquela época, a validade de todos os convênios entre missões e
FUNAI venceria no mês de março. O então presidente deste órgão
oficial, Sidney Ferreira Possuelo, utilizando-se de atribuições que
não lhe competiam, elaborou uma portaria que tinha como objetivo
final a retirada dos missionários das áreas indígenas, sob suas
próprias expensas, pois teriam que financiar a viagem de
antropólogos para avaliar (leia-se: condenar) suas atividades nas
aldeias. O excelentíssimo Ministro da Justiça naquele ano, o Dr.
Maurício Correa, negou-se a compactuar com a trama e não assinou o
maroto documento. Após as devidas considerações, o mesmo foi
devolvido à FUNAI. Um pouco mais tarde, o presidente dessa
instituição deixou o cargo e acusou os militares de estarem por
trás de sua destituição.
O próximo presidente da FUNAI, o Sr. Dinarte Nobre de Madeiro,
convencido por seus assessores imediatos, articuladores da
fracassada tentativa anterior, publicou o referido documento como a
Instrução Normativa nº 2 (IN 2), no dia 08 de abril de 1994, com a
sua posterior publicação no D.O.U. nº 71 de 15/04/94. Assim, ele
não precisou da aprovação de instâncias superiores. A reação
imediata das instituições interessadas na questão indígena foi de
total reprovação à IN 2. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
órgão ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
foi taxativo e incisivo contra este documento, rechaçando-o e
afirmando sua intenção de ignorar o mesmo por completo. A
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), surpresa com a
publicação dessa instrução normativa e da IN no. 1 (que tratava do
ingresso de pesquisadores em áreas indígenas) também se manifestou,
redigindo nota de protesto contra ambas instruções normativas.
As agências missionárias evangélicas, através de sua representante
legal, a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB)
também redigiu um documento contestando a elaboração e o conteúdo
da IN 2. Insensível ao protesto destas entidades, o mencionado
Presidente da FUNAI respondeu indelicadamente (Ofício nº
317/PRES/94, de 27/05/94) às considerações da AMTB, ao mesmo tempo
em que enviava para todas as administrações regionais as
informações sobre a publicação da IN 2, tanto em caráter
informativo como administrativo, ordenando o cumprimento da mesma
(MEMO 091/circ/cgep/94). Contudo, a IN 2 portava um cronograma e
organograma que só poderia ser iniciado através da FUNAI de
Brasília, retirando de suas regionais a autonomia para
processá-los.
Diante da atitude do então presidente da FUNAI, nenhuma das
instituições com atividades em áreas indígenas manifestou-se na
direção de celebrar convênio com o órgão governamental. Nesse
contexto de controvérsia, a FUNAI enviou à AMTB um ofício (OF/nº
367/PRESI/CIRC/94), no dia 23/06/94, com o seguinte conteúdo: “o
prazo estabelecido para dar início ao processo de regulamentação
das atividades desenvolvidas junto às sociedades indígenas será
prorrogado por 30 dias. Assim sendo, a Instituição que tiver
interesse em dar continuidade às ações em áreas indígenas deverá
formalizar junto a esta Presidência através da solicitação oficial,
dando início o processo de análise, não será concedida nova
prorrogação.” As agências missionárias evangélicas, depois de
terem consultado o ministro da justiça, resolveram atender as
orientações da IN2, ao mesmo tempo em que entravam com um processo
administrativo contra a publicação desse documento. A Missão Novas
Tribos do Brasil (MNTB) entregou o seu pedido para renovação de
convênio no dia 20/07/94, dentro do prazo legal.
Com as agências missionárias iniciando o processo oficial de
ingresso e permanência nas áreas indígenas, competia à FUNAI, a
partir daquele momento, seguir os parâmetros estipulados por si
mesma na IN 2. Porém, nunca houve continuidade a esse processo, por
razões que só a cúpula administrativa da FUNAI poderia explicar.
Diante da omissão concreta do órgão, as missões continuaram seus
trabalhos que já vinham realizando, o que revela a aprovação dos
indígenas sobre as atividades dessas organizações. Além disso,
muitas etnias indígenas já haviam preparado abaixo-assinados a
favor da continuidade do trabalho missionário em suas áreas. No
entanto, a então direção da FUNAI conseguiu impedir a abertura de
novos trabalhos missionários. Dessa perspectiva, a assessoria do
presidente desse órgão teve sucesso parcial quanto aos objetivos
finais da IN 2, que era encerrar as atividades missionárias nas
aldeias. Por outro lado, na óbvia impossibilidade de anular o
trabalho missionário através da IN2, a direção do órgão oficial
optou por deixar o tempo transcorrer sem tomar nenhuma iniciativa
para que convênios fossem celebrados. Portanto, após o advento da
IN 2, não existe nenhum documento geral elaborado pela
FUNAI-Brasília concedendo permissão ou promovendo proibição de
ingresso de missionários nas áreas indígenas onde eles já vêm
desenvolvendo suas atividades. Apesar da ambigüidade e indefinição
da situação, algumas agências missionárias optaram por enviar seus
relatórios anuais à FUNAI. Para todos os efeitos legais, a presença
missionária nas áreas indígenas está em processo de avaliação por
esse órgão governamental.
Contudo, os abaixo-assinados indígenas, aprovando o trabalho
missionário em suas áreas, são documentos legalmente válidos e
fundamentais a favor da oficialização das atividades missionárias
em suas aldeias. O artigo 232 da Constituição Federal corrobora
isso, garantindo que: “Os índios, suas comunidades e organizações
são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus
direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os
atos do processo.” Foi a partir dessa perspectiva que o CIMI se
manifestou, registrando: “Se a comunidade aprova a nossa presença,
não tem ninguém que possa nos tirar.” Na prática, a FUNAI passou a
reconhecer os abaixo-assinados indígenas, principalmente nas
administrações regionais (ADRs), onde a permissão do ingresso dos
missionários de fato acontece.
Em resumo, as agências missionárias seguiram as orientações da IN 2
expedida pela presidência da FUNAI em 1994, ao ingressarem com
pedido, em tempo hábil, de celebração de convênios. Esse órgão,
aparentemente, não deu o devido valor à própria legislação que
expediu. Mesmo assim, os missionários receberam abaixo-assinados de
várias comunidades indígenas, solicitando sua permanência nas
aldeias. Portanto, se nenhum missionário está em área indígena
portando documento de permissão de ingresso emitido pela
FUNAI-Brasília, existe a documentação mais importante de todo o
processo de concessão de entrada nas áreas indígenas: a permissão
dos próprios indígenas. Além do mais, no geral, as atividades
missionárias são desenvolvidas em harmonia com as diversas ADRs ao
redor do país. Em outras palavras, os missionários não estão
ilegais nas aldeias, embora não estejam regulamentados pelo órgão
oficial responsável pela política indígena do Brasil.
Após a gestão do Sr. Dinarte Madeiro, que durou até setembro de 95,
outros dois presidentes da FUNAI, os Srs. Márcio José Brando
Santilli e Júlio Marcos Germany Gaiger, dispensaram esforços para
gerir adequadamente o órgão, ademais permaneceram por pouco tempo
no cargo. Depois, assumiu o órgão o Dr. Sulivan Silvestre e as
agências missionárias se reuniram várias vezes com o departamento
jurídico da FUNAI para chegar a uma solução quanto ao problema
gerado pela IN 2. Como conseqüência, uma Portaria foi rascunhada em
meados de setembro de 97, visando a normatizar os convênios entre
missões e FUNAI. O documento foi criteriosamente elaborado, mas
recebeu críticas, inclusive da ABA, que não se fazia presente nos
encontros e reclamava por não ter participado das decisões. O
processo foi abruptamente interrompido com o óbito do Dr. Sullivan
no trágico acidente com a aeronave da FUNAI, na cidade de Goiânia.
Com esse incidente, o assunto de convênios foi protelado e caiu no
esquecimento oficial. Os missionários e as comunidades indígenas
brasileiras não podem ser punidos pelo tipo de dinâmica de trabalho
de alguns dirigentes e assessores da FUNAI.
A Essência da Legislação Indígena Brasileira Normativa da
Questão Cultural e Religiosa
Questiona-se, no meio
acadêmico e jurídico, se os índios podem ou não receber outra
orientação religiosa além da sua. Mesmo que em todos os demais
aspectos se apregoa a liberdade aos indígenas com base no artigo
232, tenta-se restringir seus direitos quando se trata de questões
religiosas e culturais. Ora nada melhor do que o conjunto de leis
que regem essa questão para esclarecer isso, e, melhor ainda,
começar com nossa Carta Magna:
Constituição Federal
Art. 231 - São
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
A interpretação deste artigo
deve harmonizar-se com os direitos fundamentais de todo cidadão
brasileiro: “reconhecido” não quer dizer “obrigatório”
como querem alguns.
Art. 5 - Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
VI - é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei a
proteção aos locais de culto e suas liturgias;
Comparando esses direitos com
convenções internacionais, achamos harmonia com os direitos
fundamentais:
Declaração Universal dos
Direitos Humanos: Cláusulas XIX e XVII
Com destaque à Claúsula XVII:
Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e
religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião
ou crença e a liberdade de manifestar esta religião ou crença
pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada
ou coletivamente, em público ou em particular.
A Convenção número 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), sancionada pelo
Presidente Lula, assegura que:
Art3 # 1 - Os povos
indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e
liberdades fundamentais sem obstáculos nem discriminação…
Art. 7 # 1 - Os povos
interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias
prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na
medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e
bem-estar espiritual bem como as terras que ocupam ou utilizam de
alguma forma e de controlar, na medida do possível o seu próprio
desenvolvimento econômico, social e cultural…
Art. 8 # 2 - Esses povos
deverão ter o direito de conservar seus costumes e
instituições próprias desde que não sejam incompatíveis com os
direitos fundamentais definidos …
3 - A aplicação dos
parágrafos 1 e 2 deste artigo não deverá impedir que os membros
destes povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os
cidadãos do país…
4- Resta citar ainda a alínea
“d” # VIII do artigo V da Convenção da ONU de 21/12/65, aprovada
pelo Decreto Legislativo no. 3 de 1967 (DO 23/06/67) e promulgada
pelo Decreto no. 65.810, de 1969 (DO 10/12/69; ret. 30/12/69).
Alínea “d” outros direitos
civis, particularmente:
VI - Direito à liberdade
de pensamento, de consciência e de religião.
Ademais, o desrespeito a estas
leis nacionais e internacionais em nome da diferenciação de raças
poderia ser enquadrado como discriminação pelos artigos 1 e 20 da
Lei número: 7.716 05/01/89 reformulada pela lei 9.459 de 13/05/97.
Cremos que a lei existe para defender os inocentes e para
incriminar os culpados e que devemos buscar sua proteção para o
trabalho missionário.
Ações sociais coordenadas pela presença missionária
entre os Indígenas do Brasil
Determinados princípios do
código de ética missionária enfatizam: “incentivar a ação e,
sempre que possível, colaborar com as autoridades em prol do
desenvolvimento comunitário; Tratar com igualdade todos os
segmentos da comunidade como um todo, independente de serem ou não
evangélicos, recusando-se a manipular decisões individuais ou
comunitárias, seja por meio de bens materiais ou favores”.
Em outras palavras, as ações
sociais, na ética cristã, se justificam tão somente pelas
necessidades sociais. Toda inferência quanto à barganha religiosa,
usando as ações sociais como moeda de troca junto aos povos do
Brasil, contrapõe-se justamente ao cerne de nossos valores cristãos
e missionários. Em diversas áreas indígenas, as missões evangélicas
atuaram e atuam fortemente na promoção de boa saúde, educação e
dignidade, sem um envolvimento direto com a evangelização. A ação
social é autojustificável. A confusão entre catequese e
evangelização, mais uma vez, se faz presente aqui. Enquanto a
catequese ocorre de forma impositiva e coercitiva, a evangelização
se dá, também, por meio de atos de amor, que motivam as ações que
tentam minimizar os sofrimento humano.
Sobre nossa motivação, de fato
é cristã. Enquanto ONGs humanistas atuam sem dificuldade junto aos
povos indígenas em nosso país, sentimo-nos discriminados por
termos, na raiz de nossa motivação, o amor de Deus por todo homem.
A ação missionária tem, como motivação e centro, a postura de Jesus
diante dos necessitados que lhes apresenta o evangelho e também
lhes atende em suas necessidades pessoais. Com isso, o movimento
missionário vislumbra minimizar os males sociais entre populações
indígenas.
A história da evangelização
indígena no Brasil, que remonta há mais de 100 anos, é também uma
história de compromisso com áreas sociais carentes, sobretudo a
saúde e educação indígenas. Os missionários, a partir de relação
diária e com aprendizado da língua e cultura, nunca se furtaram a
atender estas necessidades dos povos indígenas, sem nenhuma
discriminação, considerando no atendimento os que se interessaram
ou não pela mensagem do evangelho.
Estamos certos de que as
centenas de ações sociais, sobretudo nas áreas de saúde, educação e
valorização cultural, coordenadas por missionários evangélicos, tem
contribuído, e muito, para o aumento populacional e melhor
qualidade de vida entre as etnias indígenas em nosso país. Há
dezenas de casos, como os Dâw, Wai-Wai, Nadëb e tantos outros que
passaram por um verdadeiro ciclo de crescimento populacional,
restauração da valorização da cultura e língua e melhoria de
qualidade de vida por meio de projetos missionários durante décadas
em seu meio.
Muitas línguas, com risco de
extinção ou experimentando épocas de desvalorização junto ao
próprio grupo, foram e são alvo de projetos linguísticos que tendem
a grafá-las, produzir cartilhas de alfabetização, fomentar o seu
uso e garantir sua existência para a próxima geração. Os lingüistas
evangélicos atuam na produção de material de relevância para a
preservação lingüística e seu uso, em meio ao próprio povo em cerca
de 80 idiomas no momento. Trabalho este nem sempre reconhecido
pelo segmento acadêmico, por discriminação religiosa e pela
intenção de tradução da Bíblia para tais línguas.
Em 2007, as agências
missionárias evangélicas promoveram mais de 50.000 atendimentos
médicos e odontológicos entre as populações indígenas em nosso
país, por meio de agentes de saúde permanentes ou clínicas móveis
em terra indígena.
Atualmente, a Igreja
evangélica tem repensado cada vez mais o seu papel como agente de
transformação social. Numa visão de evangelho integral, iniciativa
e projetos surgem a cada dia, por isso é natural que tais
iniciativas contemplem também os povos indígenas. Lamentamos que a
linha de isolamento da política indigenista seja uma barreira para
que recursos humanos, materiais e de tecnologia social, oriundos
dos segmentos evangélicos, possam chegar aos indígenas que, como
seres humanos e brasileiros, têm direitos e necessidades.
Vale ressaltar que várias
organizações missionárias, que atuam em contexto indígena nas áreas
de assistência social, são certificadas pelo CNAS- Conselho
Nacional de Assistência Social, como entidades sem fins lucrativos
e aptas para firmar convênios de parcerias com o governo e com
empresas. Infelizmente, a inexistência de convênios formais impede
(m) que milhares de atendimentos realizados pelos missionários
constem nos relatórios oficiais.
São esses os esclarecimentos
que a AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras),
através do seu departamento de assuntos indígenas, traz à sociedade
brasileira, a fim de que autoridades, imprensa, círculos acadêmicos
e população em geral conheçam os valores, princípios e ações das
organizações que, como parte da igreja evangélica brasileira, atuam
entre os povos indígenas.
(*) A AMTB - Associação Missionária Transcultural Brasileira – é
formada por 32 Agências Missionárias Brasileiras as quais
representam mais de 50 denominações evangélicas em nosso país.
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Boletim Departamento Indígena AMTB Nº 01 -
Fechamento: 11/11/2008
Coordenação Editorial:
» Cassiano Batista da Luz
» Edward Gomes da Luz
» Rocindes Corrêa
» Ronaldo Lidório
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